Mais uma das minhas odisseias!
Já vos massacrei com a minha primeira odisseia, (viagem de São Teotónio até Beja em Outubro de 1948). Agora punha-se o problema ao contrário: como chegar de Beja até São Teotónio?
O primeiro Natal em Beja, foi, de facto, uma grande chatice. Por mais graça que se ache ao Menino e às canções dos pastores e dos anjos, aquilo era mesmo saturante, para não dizer degradante: retirar todas aquelas crianças ao convívio das suas famílias precisamente na época que diziam consagrada à família. Agora era aquela a nossa família e ali tínhamos de permanecer para abrilhantar as cerimónias da Sé e integrarmo-nos naquele ambiente mais ou menos monástico e celibatário, até ao almoço do dia 25, dia de Natal. Só então era dada a ordem de saída para as sonhadas férias e primeira viagem até às terras de naturalidade de cada um.
A mim coube-me portanto seguir para São Teotónio. O comboio era o único meio disponível e o comboio-correio era uma boa opção porque havia a grande incógnita de como chegar da estação até Odemira, (30 Km bem medidos e 365 curvas muito mal desenhadas), mas se vieramos na carroça do correio, (mala posta), tambem agora poderíamos utilizar esse precioso meio de transporte.
Saídos de Beja por volta das 21 horas, o Zé Pincho e eu, aí fomos percorrendo a planície naquele comboio desconfortável que também levava o correio, em direcção ao Algarve. Depois de parar em todas as estações e apeadeiros, demorando mais tempo na Funcheira, sabe-se lá porquê, finalmente retomou a marcha e, pelas duas ou três da madrugada, passado o túnel de Vale de Iscas, parou na nossa estação de destino - Odemira/Luzeanas Gare.
Só então nos apercebemos de que as malas que trazíamos eram enormes e pesadas, quando pensámos transferí-las para o carro da Mala Posta. Saímos do comboio e a primeira preocupação foi procurar a bendita Mala Posta, (carroça do correio, dizíamos nós).
A estação era iluminada por uma lanterna a petróleo fixada numa parede, isto na sala de espera porque na plataforma de embarque era apenas a lanterna do agulheiro ou do Chefe da estação que dava partida ao comboio.
Saindo o comboio as lanternas eram apagadas para não gastar petróleo porque o tempo era de crise, mas isso não foi a pior notícia: mau mau, foi sabermos que a carroça, (Mala Posta), já havia partido de regresso a Odemira, sem esperar a chegada do comboio que talvez viesse atrasado, ou então porque já fora alterado o modo de fazer chegar o correio de Odemira até ao comboio, o que era verdade porque entretanto a camioneta matreira do Abel Figueiredo Luis que vinha de Lagos até Odemira, passou a seguir até Amoreiras-Gare, fazendo a ligação ao dito comboio, agora noutra estação mais acessível, apesar de todos os obstáculos naturais de ribeiras sem ponte, etc.
Que fazer agora naquele lugar inóspito, numa noite escura de breu e fria de finais de Dezembro?
Não havia alternativa, tínhamos de esperar na sala da estação até que nascesse o dia e então se veria o que fazer.
Lá nos instalámos nuns bancos horríveis que tinham uma travessa que me ficava acima do meio das costas. Nem podíamos deitar-nos nos bancos porque já estavam ocupados por outros viajantes em circunstâncias idênticas às nossas. Ali ficámos até nascer o sol ou romper as núvens negras que o encobriam. Má noite aquela!!!...
Quando o dia começou a clarear, naquele pequeno dia de inverno em que o sol dificilmente rompeu as núvens, aprontámo-nos para resolver o nosso problema: chegar até Odemira!
Mas como e por que meio se não havia qualquer transporte nem que tivéssemos de pagar? Nada! Nem burro ou cavalo ou outro meio qualquer, e nós com aqueles malarrões de viagem...
Depois de trocarmos ideias um com o outro, o Zé Pincho e eu, ambos de treze anos, mas ele mais espigadote, resolvemos meter-nos ao caminho a pé. E aí vão eles com as malas às costas: passámos a linha do caminho de ferro, entrámos na estrada de macadame, (Mack Adam), e percorremos pouco mais de um quilómetro. Quando passávamos por debaixo de uns eucaliptos na beira da estrada, começou a chover. Ainda nos abrigámos debaixo e junto aos troncos dos eucaliptos, mas a chuva era persistente e portanto resolvemos avançar mesmo assim, de corpinho bem feito, fatinho preto da praxe e chapeu de cavaleiro, (ainda não tínhamos direito ao chapeu de côco).
Assim continuámos até que a chuva parou e mais tarde voltou, molhando o que já não estava enxuto. Enfim éramos uns pintainhos debaixo de chuva.
Teríamos percorrido uns seis quilómetros e as coisas não melhoravam, antes pelo contrário.
Foi então que eu vi uma vereda que saindo do macadame pelo lado direito subia uma encosta e eu disse para o meu colega: -Esta vereda vai dar a algum sítio onde há pessoas, vamos por aqui até encontrarmos alguém que nos possa informar sobre o modo de chegar a essa maldita vila de Odemira, desterrada no fim do mundo!
Feliz decisão porque depois de passarmos o cume daquela encosta, descer a um pequeno vale e subir outro cume, (cristas militar e topográfica, como mais tarde aprenderia no estudo da topografia, por motivos profissionais), avistámos um monte na contra encosta, onde certamente haveria gente.
Chegados ali, entretanto era cerca de meio dia, batemos à porta e apareceu-nos uma senhora que, admirada, foi chamar o marido e os dois convidaram-nos a entrar, pois estávamos todos enxarcados e estafados pelo peso das malas.
Contámos a nossa estória e perguntámos como poderíamos chegar até Odemira, se não haveria um carro de muar que se alugasse, ou mesmo de burro. Felizmente minha Mãe tinha-me enviado, salvo êrro 140$00 (cento e quarenta escudos), na altura dinheiro bastante para enfrentar estas dificuldades.
A senhora mandou-nos meter na cama e pôs as nossas roupas molhadas a secar junto à lareira em que ela, o marido e os filhos se aqueciam: dormimos como dois anjos cansados!
Cerca das duas horas da tarde a senhora acordou-nos e, depois de bem comidas umas torradas e café, o senhor da casa acompanhou-nos até uma taberna existente junto à estrada de macadame uns quilómetros mais à frente, onde o taberneiro dispunha de uma charrete que alugava.
Na hora de acertar o custo da viagem até Odemira, o taberneiro, que viu ali modos de ganhar o dia que a taberna não rendera, exigiu-nos 80$00 pelo frete. Era muito dinheiro!!! E lembrar-me eu que, anos antes, meu avô comprara os Algares, (uma herdade com muita cortiça), por "quarenta e oito mil réis e uma tigela de farinha de milho todos os anos".
Mas que havíamos de fazer? Lá subimos para aquela artimanha puxada por um cavalo lazarento e metemo-nos ao caminho. Mais duas ou três horas de solavancos conforme as covas da estrada mal construída e sem conservação, com buracos aumentados pelas chuvas do inverno que decorria.
Seriam umas dezanove horas, noite cerrada, quando chegámos a Odemira. Pelo caminho fomos discorrendo o que fazer quando chegássemos: -Vamo-nos apresentar ao Padre Borralho, disse eu. E ele que nos ajudasse a resolver o nosso problema que consistia em ir para São Teotónio, mais 15 quilómetros à frente.
Assim fizemos e em boa hora, porque o Prior, como bom pastor que era, deu guarida aos seus cordeirinhos, (ainda não éramos propriamente "ovelhas nem carneiros").
Dormimos na casa paroquial e, no dia seguinte, apanhámos a tal camioneta matreira do Abel Figueiredo Luis que ía até Lagos, passando por São Teotónio.
P.S. -Não sei o nome das pessoas que nos receberam naquele bendito monte da serra da garraza, naquela situação de grande precaridade e aflição, mas o engraçado é o que se segue:
Na década de setenta, portanto cerca de trinta anos mais tarde, uma "velhota" pedinte, (destino de muitas pessoas das zonas rurais quando atingiam a incapacidade para o trabalho duro), passou pelo monte de Pègões, onde nasci e agora era lavradora minha irmã mais velha e onde era habitual dar guarida a pessoas, homens e mulheres que vagueavam socorrendo-se da generosidade dos pequenos lavradores. Havia mesmo um casarão onde recolhiam os homens, que à noite recebiam uma refeição quente e as mulheres alojavam-se no monte com o pessoal da casa.
A tal velhota, na conversa de lareira, contou à minha irmã que há muitos anos tinha recebido no seu monte dois "mocinhos" de São Teotónio que chegaram lá todos molhados e vinham de Beja, onde estudavam, etc, contando toda a história da nossa permanência no seu monte.
Quando terminou a história, minha irmã revelou à velhinha que um desses "mocinhos" era seu irmão o que causou grande surpresa e alegria. Como o mundo é pequeno!!!
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