terça-feira, 1 de abril de 2008

1948 (Continuação) – Chegada e Instalação

Seriam uma dez horas da manhã de um dos primeiros dias de Outubro de 1948, quando finalmente demos entrada no portão da cerca do Seminário. Contornado o cruzeiro então existente frente à escadaria da entrada principal, onde hoje se encontra a estátua do fundador, Bispo D. José do Patrocínio Dias, deparou-se-nos a entrada principal do edifício imponente, embora de linhas sóbrias e a que não prestámos atenção especial.
Fomos recebidos pelo porteiro, o Barão, homem ainda novo, atarracado e bem apessoado, a quem a sorte tinha reservado uma deformação na mão direita. Passada a grande porta, entrámos num átrio quadrangular, dominado ao centro por uma estátua em mármore branco da Senhora de Fátima, naquela postura de acolhimento que se lhe conhece. Mandou-nos o Barão para a sala de espera, no lado esquerdo do átrio. Ali nos acomodámos numas cadeiras austeras, onde eu, na minha estatura de pré adolescente, não conseguia chegar com os pés ao chão: não me senti nada confortável, devo dizer!
Do lado oposto do átrio, simétrica à sala de espera, ficava outra sala, cuja porta era igual e tinha escrito por cima:”Sala dos Professores”. A Eugénia, nossa guia e irmã do Zé Pincho, chamou-nos a atenção para essa sala: olhem é ali que se reúnem os professores para vos darem as notas. Embora não soubéssemos muito bem o que era isso de “notas”, lá concordámos, com uma expressão de admiração: aahh!
Passado algum tempo de espera, para isso se destinava a sala onde estávamos, apareceu um padre, ainda jovem, teria trinta e poucos anos, que mais tarde soube chamar-se Nazário, Padre Nazário, que nos mandou seguí-lo e nos conduziu, atravessando o claustro de corredores muito compridos, a uma escadaria que nos faria chegar às camaratas. Eu fui para a dos “pequenos”. Cada camarata era constituída por uma sala muito grande, ocupada com pequenos cubículos individuais, dispostos em quatro linhas e separados por dois corredores. Cada cubículo, com cerca de 3 X 2,5 m, e paredes com cerca de 2m, dispunha de uma cama, mesa de cabeceira e armário, o essencial para garantir conforto ao seu ocupante, bem como preservar a sua privacidade. Anexo à camarata existiam as instalações sanitárias, muito bem cuidadas e constituídas por lavatórios individuais e cabines de WC e de chuveiro suficientes para o número de utentes atribuídos. Num dos extremos da camarata existia um quarto destinado ao Vigilante, (um padre que vigiava pela disciplina e comportamento dos alunos, durante a sua permanência nas camaratas).

3 comentários:

Anónimo disse...

"In illo tempore",o padre era aos olhos dos alentejanos um impostor,um preguiçoso,um inútil que fugira ao trabalho e que vivia, espertamente,à custa dos outros.

A grande maioria das famílias alentejanas,ao contrário das beiroas" sentiam vergonha que os seus filhos fossem estudar para padres.
Por isso,é que meu pai e eu fomos,por uns atalhos,para ninguém desconfiar, falar com o padre de Colos que nos recebeu muito bem e se encarregou de tratar da minha ida para o Seminário, discretamente.

As pessoas diziam muito mal dos padres: "...nem casavam,tinham amantes,filhos das suas "governantes"...
Contavam-se muitas histórias picarescas sobre padres amancebados.
O padre que me baptizou e que ía a nossa casa a quem meus pais chamavam o "compadre prior" vivia
maritalmente com uma companheira com quem se embebedava e faziam escândalos. Mas as pessoas gostavam dele e os mais abastados até lhe pagavam a "côngrua" todos os anos.Fora "afastado",mas continuou na sua profissão até morrer. Era um bom homem.

Depois de sair da Escola Primária,"com distinção" no meu exame da 4ª classe em Odemira, o meu interesse em estudar era ainda maior e estava determinado a vencer todas as dificuldades. Pensava que alguns anos depois poderiam ser o que quisesse e livrar-me assim da "escravatura do campo" no dizer do meu irmão mais velho,meu grande amigo e meu fiel conselheiro.
Entre o,comodamente,fazer a vontade às pessoas amigas que me conheciam e levavam uma vida de trabalho e privações,eu aconselhado pelo Miguel, decidi
mudar corajosamente o rumo à minha vida e lutar com tenacidade para conseguir uma vida melhor.
Por isso foi com coragem, determinação,esperança e algum entusiasmo que deixei o Campo e a casa dos meus pais e fui para o Seminário.

Os poucos anos que vivi no campo, em contacto com a Natureza,os animais,as pessoas simples... ficaram bem gravados na minha memória e ainda hoje tenho uma grande simpatia pelos camponeses.
Aprecio muito a sua vida,sóbria e rude,mas ocupada, tranquila, saudável e livre.
Conservo deles ainda o gosto pela Natureza,a sua capacidade de luta,a sua teimosia e o seu grande amor à Liberdade.

Em Setembro,fui ao alfaite que me fez o fato preto e depois fui para o Seminário.
Mas não iria ser padre...
José Contreiras

NOCA disse...

Olá Zé!
Obrigado pelo teu testemunho, realista e sincero. Foste um dos chamados e seguiste a rota do José Joaquim Guerreiro, do Monte das Pretas e do António Nobre Gonçalves, filho do moleiro de Colos, ambos teus vizinhos e meus colegas de ano (1948).
Não estás arrependido de ter dado ese passo, eu sei, e tornaste-te um cidadão interventor, que muito deu à sociedade.
Relativamente ao teu irmão Miguel, recordo-o com saudade, pois era um homem (rapaz) generoso e amigo dos seus amigos que eram muitos.

Anónimo disse...

A entrada no Seminário e o início de uma vida comunitária exclesiástica,disciplinada,monótonae dura,foi um choque psicológico e emocional muito violento.
Recorda-me de estarmos na capela e
as lágrimas surgiam algumas vezes ao recordar a minha Liberdade e os amigos que ficaram na minha terra...
E sentia uma vontade irresistível de fugir e regressar a minha casa...
Enchia-me de força e raiva,mas a razão prevalecia e assim continuei.
Tinha que vencer e não devia voltar atrás.

Mas no segundo ou terceiro dia,tive a minha primeira e mais violenta "prova de fogo".
Estávamos na Sala de Estudo "dos pequenos"(mais novos) vigiados pelo perfeito mais severo e brutal
que todos os seminaristas temiam: O célebre padre Almeida.
Era um homem robusto, rubicundo, irascível e implacável.
Um dia estávamos (eu,o António José e o Albertinho, hoje sr. Dr. Alberto!!!) na Sala de Estudo e o padre perfeito resolveu fazer uma experiência:
Saíu e ficou a vigiar-nos de fora pelo buraco da fechadura. Por azar nosso, nós os três ficámos dentro do ângulo de visão e ele estava a ver-nos, pelo buraco da fechadura, em amena cavaquiera.
Minutos depois a porta abre-se de rompão e aparece o furibundo perfeito que se dirigiu a nós com
ar sarcártico: "Então meus lindinhos? A conversar?! Eu dou-vos a conversa!..."
Meteu a mão no bolso da batina e puxundo de uma régua que terminava em palmatória de azinho e ainda com 5 buraquinhos para a saída do ar(era um requinte técnico que permitia reduzir a obstrução do ar e permitir uma maior velocidade à palamatória!!!),disse-nos com
uma grande e eufórica satisfação e um terrível e sarcástico sorriso:
- Vocês,meus santinhos, vão conhecer a minha santa luzia!...
Volta-se para o António José e este estendeu-lhe a mão para receber o castigo. Depois volta-se para mim e ,corajosamente,estendi também a mão. Neste momento a cagão do Albertinho que foi sempre um miserável beato desfaz-se em lágrimas... O padre Almeida não lhe
deu a dolorosa reguada,nem justificou e diferença de tratamento.
Perante este injusto e brutal tratamento,eu que nessa idade já tinha um elevado sentido de Justiça
disse cheio de raiva e desespero:
O sr. padre foi injusto,porque se castigou o António José e eu,porque razão não fez o mesmo ao
Alberto?!??
O padre não me deu uma justificação. Então eu,determinado, cheio de revolta e indignação disse-lhe em voz alta e de desafio:
Foi uma injustiça e eu não aceito injustiças!!! Vou-me embora já do Seminário!!!
Acabou!!! E,perante o espanto do padre carrasco saí de rompão da sala, furibundo e determinado a deixar o Seminário.
Mas no Claustro encontro o padre Bento Pires que era o Ecónomo do Seminário e nosso professor de Ciências Naturais.
Sem mais cerimónias,berrei:
Onde é o gabinete do Vice-Reitor???
O padre Bento Pires que era um homem calmo e de uma grande serenidade. Disse-me com compreensão e simpatia:
Eu digo-te,mas peço-te que venhas primeiro ao meu escritório e depois
fazes o que achares melhor.
É um conselho de amigo...
Sentei-me em frente da secretária do padre Bento Pires e deitei cá para fora toda a minha indignação e revolta,decidido e determinado a
a sair do Seminário.

Mas essa conversa serena e amiga de alguém que compreende os outros deixou-me mais calmo.
E decidi em plena consciência continuar...
Curiosamente,a partir daí,o meu carrasco,passou a tratar-me com elevado respeito e até estima.
Por isso continuei a minha vida de seminarista,onde criei muitas amizades que ainda hoje perduram.