REFLEXÕES
Vila Velha, 25 de Janeiro de 2010
Desço do alto do castelo, depois de percorrer algumas ruas do Burgo Medieval, bem conservado dentro das muralhas mais antigas. Castelo de Vide estende-se por ali fora nos telhados multicolores, nas ruelas estreitas, nos horizontes largos.
Mesmo ali começa a Judiaria. Deambulo pelas suas vielas íngremes e floridas. Invade-me, então, a emoção esquecida dos tempos perdidos, das gestas bíblicas lidas no calor do lar, dos poemas escondidos cantados nas manhãs de sol, nos salmos rezados ou cantados em família, da vida de um povo perseguido e martirizado ao longo dos séculos.
Vieram de longe e aqui construíram o seu enclave, aqui construíram o seu lar, aqui construíram a sua sinagoga. Expulsos da grande Espanha, aqui tão próxima, por reis ditos católicos, aqui se acolheram, aqui criaram riqueza feitos mercadores ou artesãos, para lá dos arcos ogivais dos portados das suas casas. E enfeitaram e floriram as ruas. E foram pais de botânicos e médicos ilustres. E devem ter escrito poesia à semelhança do Job da Bíblia ou imaginado novelas bonitas como a de Rute, a Moabita… Certamente leram os profetas e alimentaram a sua esperança messiânica. Certamente sacrificaram e comeram o cordeiro pascal e cantaram seus cantares de alegria. E sofreram as perseguições santas. Fingir-se convertido para salvar a vida. A vida vale mais que as aparências…
E desci do castelo até ao Largo da Fonte pela rua da Fonte. Passei pela sinagoga na esquina do cruzamento com a Rua da Judiaria. Espreitei a ruína de alguns edifícios. Reparei nas plantas nascidas entre as pedras da calçada ou em vasos estrategicamente colocados. As duas portas. As ogivas e as gravuras nas pedras lavradas. Imaginei as barbas longas e o quipá sobre as cabeças hirsutas. Os textos sagrados bem guardados e lidos e estudados por novos e por velhos. E a esperança de um mundo melhor…
Shalom, amigos!
Shalom, sombras de antepassados espoliados! Shalom!
E a paz regressa-me à alma, ao frio e à humidade destas ruas estreitas e íngremes. E desço cuidadosamente até à fonte. Uma gatinha triste e carente, de pelo branco fininho, solicita-nos umas festas. E vagueia sobre a história das pedras, das casas e das ogivas. Sabe lá ela que aqui viveu um povo que, quase moribundo, ressuscita cada dia que passa… E dele somos herdeiros. Se não lhe herdamos o sangue, herdamos-lhe a cultura que nos envolve, quer queiramos quer não.
Shalom, amigos.
Cuidadosamente, desço até à Fonte da Vila. Uma cúpula construída sobre seis colunas. Quatro bicas jorram água ininterruptamente, há mais de quinhentos anos. No cimo, uma tulipa - flor que os judeus levaram do Paquistão para a Holanda - é suportada por duas crianças e, na sua base, uma pequena caldeira. Aqui se deitava a água para que a tulipa não secasse. Símbolos de vida e da vida…
E, aqui junto desta fonte que me lembra o baptismo cristão e a vida daqueles que foram forçados a recebê-lo, rezo para que a intolerância religiosa (e política e social e ideológica e cultural e…) desapareça e uma sadia convivência dos povos e das gentes se estabeleça
Por ironia do destino, escrevo estas reflexões no dia 25 de Janeiro, dia em que termina o oitavário de oração pela unidade das igrejas cristãs. Aqueles que seguem Jesus de Nazaré – o profeta do amor e da tolerância – mostram-se incapazes de fomentar a união e de viver na aceitação das diferenças. Continuam a reforçar o seu próprio autoritarismo, sem dignificar a sua autoridade…
Sem comentários:
Enviar um comentário