A CRIAÇÃO
Vila Velha da Serra, 10 de Março de 1973
Não levei este maldito caderno de capa azul para as pequenas férias de Carnaval que fui passar a Lisboa. Ainda pensei em comprar outro ou escrever nalgumas folhas soltas como por vezes costumava fazer. Mas adiei. É aqui, nestas folhas quadriculadas, amarradas pelo fio metálico disposto em espiral, que eu gosto mais de escrever. Pois escreverei!
Na quarta-feira passada, 7 de Março, fomos juntos – eu e Madalena – à missa da imposição das cinzas, na Sé. Era importante entrar na Quaresma como penitentes.
Ainda o pó da cinza não desaparecera das nossas frentes e, descendo calmamente em direcção à Praça do Comércio, já a nossa conversa se dirigia para o significado do rito celebrado e para a melhor interpretação da linguagem bíblica.
Expunha eu com a grande eloquência, que a formação adquirida me permitia, um arrazoado de ilações retiradas da narrativa da criação do Homem, o que vinha simplesmente a propósito das cinzas que são o seu fim último visível. E contava como, em criança, imaginava a Deus pairando sobre as águas e sobre toda a criação admirando afável a sua obra. Não lhe faltavam sequer as suas longas barbas brancas… E descrevia-o sentado numa pedra modelando com arte e saber o molde do que havia de ser o Homem, após o seu sopro de vida. E como imaginava aquele barro a tomar vida, animar-se, mover-se, andar, falar…
Porém, como a cor da pele sempre foi uma dificuldade para bem interpretar este episódio fantástico de imaginação e de crença dos primeiros poetas teólogos, procurava adicionar um pouco mais de narração.
Então, colocava Deus a modelar o primeiro par humano na Primavera do Tempo, entre flores de muitas cores e regatos a correr mansos. E nascia assim o Homem de pele vermelha, reflexo das papoilas e das rosas, e de todas as outras flores do prado. Dava-lhe a força selvagem da natureza e o calor da ternura pela Mãe/Terra.
(Parece-me que o vejo a recordar aqui a “Carta do Chefe Índio Seattle ao Grande Chefe Branco de Washington”, ao Presidente dos Estados Unidos que queria comprar terras aos índios. Sei que, de tanta vez a ler, a sabia praticamente de cor…
Vila Velha da Serra, 10 de Março de 1973
Não levei este maldito caderno de capa azul para as pequenas férias de Carnaval que fui passar a Lisboa. Ainda pensei em comprar outro ou escrever nalgumas folhas soltas como por vezes costumava fazer. Mas adiei. É aqui, nestas folhas quadriculadas, amarradas pelo fio metálico disposto em espiral, que eu gosto mais de escrever. Pois escreverei!
Na quarta-feira passada, 7 de Março, fomos juntos – eu e Madalena – à missa da imposição das cinzas, na Sé. Era importante entrar na Quaresma como penitentes.
Ainda o pó da cinza não desaparecera das nossas frentes e, descendo calmamente em direcção à Praça do Comércio, já a nossa conversa se dirigia para o significado do rito celebrado e para a melhor interpretação da linguagem bíblica.
Expunha eu com a grande eloquência, que a formação adquirida me permitia, um arrazoado de ilações retiradas da narrativa da criação do Homem, o que vinha simplesmente a propósito das cinzas que são o seu fim último visível. E contava como, em criança, imaginava a Deus pairando sobre as águas e sobre toda a criação admirando afável a sua obra. Não lhe faltavam sequer as suas longas barbas brancas… E descrevia-o sentado numa pedra modelando com arte e saber o molde do que havia de ser o Homem, após o seu sopro de vida. E como imaginava aquele barro a tomar vida, animar-se, mover-se, andar, falar…
Porém, como a cor da pele sempre foi uma dificuldade para bem interpretar este episódio fantástico de imaginação e de crença dos primeiros poetas teólogos, procurava adicionar um pouco mais de narração.
Então, colocava Deus a modelar o primeiro par humano na Primavera do Tempo, entre flores de muitas cores e regatos a correr mansos. E nascia assim o Homem de pele vermelha, reflexo das papoilas e das rosas, e de todas as outras flores do prado. Dava-lhe a força selvagem da natureza e o calor da ternura pela Mãe/Terra.
(Parece-me que o vejo a recordar aqui a “Carta do Chefe Índio Seattle ao Grande Chefe Branco de Washington”, ao Presidente dos Estados Unidos que queria comprar terras aos índios. Sei que, de tanta vez a ler, a sabia praticamente de cor…
"Como podeis comprar ou vender o céu, o calor da terra? A ideia não tem sentido para nós. Se não somos donos da frescura do ar ou o brilho das águas, como podeis querer comprá-los?
Qualquer parte desta terra é sagrada para o meu povo. Qualquer folha de pinheiro, cada grão de areia das praias, a neblina dos bosques sombrios, cada monte e até o zumbido do insecto, tudo é sagrado na memória e no passado do meu povo. A seiva que percorre o interior das árvores leva em si as memórias do homem vermelho.
Os mortos do homem branco esquecem a terra onde nasceram, quando empreendem as suas viagens entre as estrelas; ao contrário os nossos mortos jamais esquecem esta terra maravilhosa, pois ela é a mãe do homem vermelho.
Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs, os veados, os cavalos, a majestosa águia, todos são nossos irmãos. Os picos rochosos, a fragrância dos bosques, o calor do corpo do cavalo e do homem, todos pertencem à mesma família…”
Aqui está o Homem Vermelho, o Homem da Primavera, da seiva que percorre o interior das árvores, das folhas e dos rebentos dos novos ramos…)
E o Homem de pele colorida escolheu os seus prados, os seus jardins, os seus bosques, num respeito profundo pela Mãe/Terra.
Chegou o Verão e Deus não estava satisfeito. Achava aquele homem colorido demais para o seu gosto
De novo tomou o barro e modelou outro homem. Afagou – lhe aqueles cabelos ásperos e aperfeiçoou-os com ternura.
Insuflou de novo um vento novo nas suas narinas e novamente o barro se animou, as mãos se agitaram, o peito se dilatou e andou e falou e riu muito.
Mas o Sol inclemente caiu sobre ele e queimou a sua pele. Os pés assentes na terra tomaram a cor da própria terra e as palmas das mãos segurando um ramo de árvore não se deixaram queimar.
E o Homem Negro, que havia de ser escravo de outros homens, que havia de ser explorado na sua própria terra, que havia de sofrer guerras e violações, que havia de ser transportado em condições indecentes para outras terras, outros climas e outras fomes, escondeu-se nas florestas. E, das suas profundezas, surgiram cantares espirituais que haviam de entoar nas catedrais dos porões dos barcos negreiros a caminho das Américas, ao sol bruto dos campos de algodão, no fundo escuro das minas de carvão, nos engenhos da cana de açúcar. Ecoaram nas noites de fome e pancadaria, de gritos e violações, de estrelas a povoar o espaço imenso, cantos sofridos e de esperança.
Entre eles surgiram profetas de esperança:
(Ele recordava certamente um certo profeta negro, Martin Luther King de seu nome, que em 1963, gritava os seus sonhos e a sua esperança:
“Eu tenho um sonho…
Eu tenho um sonho. Um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos descendentes dos donos dos escravos sentar-se-ão juntos à mesa da fraternidade.
Eu tenho um sonho. Um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, transformar-se-á num oásis de liberdade e justiça.
Eu tenho um sonho. Um dia, os meus quatro filhos pequenos viverão numa nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu carácter.
Eu tenho um sonho hoje!
Eu tenho um sonho. Um dia, todos os vales serão alteados e as montanhas e as colinas serão abatidas; endireitados serão os caminhos tortuosos e aplanadas as veredas escarpadas. Então se manifestará a glória do Senhor e todo o homem verá a sua magnificência.
Esta é a nossa esperança.”)
Passou o Verão. Amadureceram os frutos…
Depois, as folhas amareleceram e começaram a cair. Escondido nas florestas ou correndo nas pradarias, Deus deixou de ver o Homem que criara e teve saudades dele e do seu acto criador. As primeiras chuvas outonais amoleceram o pó da terra, as tardes começaram a ficar frias e tristes…
E Deus retomou o barro, afagou-o com carinho, desenhou uns olhos mais rasgados e uns cabelos desalinhados, modelou umas mãos muito finas e soprou novamente o seu sopro de vida. E novamente o barro inerte moveu-se, fez um gesto gracioso com as mãos, saltitou e correu para jardins encantados onde o lótus e o nenúfar enfeitavam lagos de paz. Depois, juntou as mãos e ficou a meditar durante muito, muito tempo. E o barro tomou a cor da tarde, da natureza outonal, dos campos beijados pelo Sol Poente.
Para lá das montanhas mais altas da Terra, o Homem Amarelo estabeleceu os seus domínios, procurou a perfeição com toda a força do seu espírito, na meditação profunda e na oração constante.
Veio o Inverno.
As montanhas cobriram-se de neve e brilhavam quando o Sol as fazia reluzir. Os rios turvos e turbulentos arrasavam as margens e arrastavam quanto podiam. Sucediam-se dias e dias de tempestades de chuva e de neve. As noites eram longas, longas e escuras. A Lua corria entre nuvens de medo e fúria.
Numa manhã de Sol lavada e pura, depois de dias de tormenta forte com raios, trovões e grandes chuvadas, Deus sentou-se novamente na pedra da criação. Olhou o horizonte fresco e perfumado da humidade dos campos.
Tomou o barro fresco, limpo de impurezas e macio. Afagou-o novamente com ternura. Emocionou-se ao passar levemente as mãos na superfície lisa das costas, dos braços, das pernas, do pescoço e da face do novo projecto de criação. Olhou enternecido a sua obra e deu-lhe a cor da neve das montanhas, colocando nos seus olhos um pouco do azul do céu, ou terá sido o verde dos rios, ou o castanho da terra/mãe?
E o Homem Branco ficou aprisionado entre vales e montanhas, entre rios e oceanos, construindo a pouco e pouco a enorme empresa de conhecer e conquistar todo o Mundo.
Deus, então, sorriu e achou que era muito bom quanto tinha criado…
Tínhamos chegado à paragem do eléctrico, mas decidimos prolongar o passeio e a conversa.
Após este aditamento à narração bíblica, Madalena agarrou-me o braço e exclamou:
- Que grande imaginação tu tens! Isso alguma vez poderá ter sido assim?
- Claro que não – respondi. – Nem assim. Nem assado. Nem como eu conto, nem como a Bíblia conta. A evolução é um facto inegável e a narrativa não é nem história, nem ciência. É, isso sim, uma interpretação poética e teológica da fé do Homem daquele tempo concreto em que foi escrito. Não creio que tenha sido um único par humano, senão Deus tinha abençoado o incesto. Nem três ou quatro, como eu gosto de descrever.
E continuámos a conversa…
Tudo por causa do pó das cinzas.
Atravessámos devagar o Terreiro do Paço até ao Cais das Colunas. Os cacilheiros despejavam constantemente gentes da outra banda. Parecia que a ponte, que uniu finalmente as duas margens, rangia ao volume do trânsito que suportava. E o Tejo, sujo, mas belo, beijava devagarinho a cidade.
Tudo por causa do pó das cinzas…
- Nós somos feitos de pó dos astros e de fragmentos de estrelas… Não somos simplesmente pó amassado com água e modelado com amor e ternura.
Madalena quebrou assim o silêncio enquanto olhávamos o rio resplandecente de luz espelhada.
- É verdade – respondi. – O poeta do Génesis não podia ter escolhido melhor matéria-prima para a criação: o barro. Nem melhor profissão para o criador: oleiro. Devia ser uma profissão que misturava magia e perfeição. Ver sair das suas mãos aqueles objectos tão perfeitos e tão úteis: os copos, os pratos, as bacias, os cântaros e vasos… Era mesmo de artista!
Reflectíamos assim sobre a vida, enquanto o Tejo corria para o mar, os barcos o sulcavam arfantes e as nossas pequenas férias de Carnaval estavam a terminar.
“Lembra-te, homem, que és pó…”
(Para a época, parece-me que ele estava bastante avançado, ou porque lera coisas sobre este assunto, ou porque assistira a alguma conferência, ou porque algum dos padres novos, ditos progressistas, que, por esse tempo, fervilhavam como coadjutores de paróquias ou professores de Moral nos liceus, vindos de seminários suspeitos e desmantelados ou de universidades estrangeiras, lho soprara em eventuais conversas informais.
Tomava forma já nessa altura a interpretação não literal – impossível compatibilizar a interpretação literal com os avanços e as descobertas científicas – das narrativas da criação.
Não mais era possível ver Deus passear na brisa da tarde no jardim do Éden a conversar com o único par humano existente. É uma imagem muito bonita, muito romântica, muito amorosa, mas não passa de uma metáfora, ou de um mito, ou da única interpretação possível para o poeta/teólogo que se deu ao trabalho de compilar as diversas narrativas genesíacas. Deixou, porém, registada a sua crença num Deus criador e, com os instrumentos e os conhecimentos dessa altura, forneceu-nos um poema que atravessou séculos, cerca de trinta. Três mil anos!)
Dirigimo-nos, em seguida, para a paragem dos eléctricos.
Chegou o da “Estrela”. Era o dela,
- Adeus.
- Adeus e até breve – respondi.
E, pela primeira vez, beijámo-nos docemente na face.
Nota:-Aqui vai a minha homenagem ao meu Amigo Antonino Mendonça, por este belo naco de poesia.
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