Após um período de preparação psicológica, (mentalização para o internamento de que nem havia consciência) e física, (aquisição e arrumo do enxoval com predominância do fatinho preto com chapéu “à cavaleiro”, uma vez que não havia ainda direito ao chapéu de “coco”, e de que faziam parte elementos como as fronhas e toalhas de higiene pessoal, passando pelas meias, cuecas e camisolas e lençóis, tudo marcado com o número pré atribuído, “42”, até à escova de dentes); após essa preparação, chegou o dia das despedidas. A mais notável, foi a despedida do Avô Zé Francisco, um venerando velhinho de 82 (?) anos, muito exigente com os filhos e para os netos bastante forreta, pois não se descaía com qualquer gorgeta , por mínima que fosse. Mas agora foi diferente, o neto ía estudar, e então lá saiu uma notinha de 20 mil réis para acudir aos precisos. Por isso disse que foi uma despedida notável, (meteu uma nota), sou claro.
Para quem tinha comprado, anos antes, uma propriedade a produzir 200 arrobas de cortiça por ano, por "48 mil réis e uma tigela de farinha de milho todos os anos", assim reza a escritura de compra e venda, dar agora 20 mil réis ao neto não foi coisa de somenos. Bem hajas Avô Zé Francisco Pereira!
Mas vamos à odisseia: o objectivo era chegar a Beja a partir de São Teotónio, o que em 1948, não era tarefa fácil.
Até Odemira sabíamos que havia uma camioneta matreira do “ABEL FIGUEIREDO LUIS”, e havia um comboio de correio passando pela estação de Odemira que dista 30 Km daquela vila, que levaria a Beja. Como seriam percorridos esses trinta quilómetros de curvas por terreno muito acidentado, entre Odemira e a estação da CP?
Felizmente o meu companheiro, José Pincho, tinha uma irmã, Eugénia, professora regente em Entradas, que também viajava nessa altura para dar início às aulas: foi a nossa companheira e guia, até Beja.
Como o comboio levava o correio, havia uma ligação de Odemira à estação por carroça de bestas, para alcançar o correio da vila e suas freguesias. Nada melhor que aproveitar esse meio e viajarmos também até ao comboio: meu dito, meu feito.
Pelas oito da noite, já escuro, saímos de Odemira naquela geringonça e cedo descobrimos que facilmente batíamos com as cabeças no toldo da carroça, sobretudo quando um solavanco maior fazia abanar a estrutura geral do veículo.
Entramos na rotina do andamento e, esgotados os assuntos de conversa, apareceram as primeiras sonolências próprias da repetição das coisas. Agora sim as cabeçadas no toldo da geringonça já eram espontâneas e corriqueiras, sem necessidade dos solavancos do caminho irregular. De vez em quando ouvíamos o carreiro incitando as muares batendo-lhes com as arreatas nas ilhargas ou com o chicote, para que se apressassem, não fosse o comboio vir adiantado.
Chegamos à Estação de Odemira, (hoje Luzeanes-Gare) por volta da meia-noite, depois de bem amassados e batidos com tudo quanto era carroça.
Era uma noite escura, sem lua nem estrelas a brilhar: seria mau agoiro? Nem pensávamos nisso. A expectativa da novidade não permitia tais locobrações.
Finalmente lá apareceu o comboio, um monstro de ferro a chispar lume nos carris, a assobiar e a fazer muito barulho, mas cujas dimensões os candeeiros a petróleo não permitiam avaliar. Entrados no comboio veio a tarefa de arrumar as malas naquelas altas prateleiras com rede e ocupar os lugares disponíveis antes que outro se adiantasse.
Aí vamos nós a caminho do túnel de Vale de Iscas o mítico túnel de que já ouvíramos falar pelos assaltos que ali se fizeram, até ao comboio, nas décadas anteriores. Depressa atingimos a Funcheira, entroncamento da linha do Sado, onde ainda se apregoavam as bilhas de água fresca, seria uma da manhã do dia seguinte a termos saído de São Teotónio pela meia tarde anterior.
Entramos na rotina sonolenta duma viagem sem fim, com as costumeiras cabeçadas naqueles bancos horríveis que não paravam de abanar.
Depois de percorrida toda a planície alentejana, aí pelas seis da manhã, surgiu no horizonte alvoroçado a silhueta da cidade de Beja, enquanto atravessávamos os gordos barros de região, tão genialmente descritos por Manuel Ribeiro. Em breve o despontar do sol tornaria mais nítidos os contornos do Castelo e do Depósito da água, as duas únicas construções que saíam do perfil horizontal arredondado da cidade. Contornamos a cidade pelo noroeste, por uma linha já inexistente e atingimos a estação, muito movimentada. Com a luz do dia, podíamos agora admirar a grandeza daquela máquina que nos trouxe - o comboio que antes nunca víramos.
E agora, o último quilómetro e meio, como irá ser? A cauda é sempre o pior de esfolar! Arrastando uns malarrões, só agora se via bem o seu tamanho e peso, fizemos aquele íngreme troço da estação até ao jardim, junto ao seminário velho, admirando o polícia sinaleiro que àquela hora da manhã, já ocupava a sua pianha, na bifurcação junto ao jardim das Portas de Moura. Madrugada, pensávamos nós, eram talvez nove e tal e choviscava, após dias de chuva intensa. Pois é, daquele canto norte do jardim público até ao Seminário, pela actual Avenida Dom Afonso Henriques, foi o pior trajecto que já fiz, em toda a minha vida: o piso, isto é, o leito da rua era aquele barro escuro, completamente empapado devido às chuvas que já referi e era sulcado por carroças agrícolas de toda a espécie, (ainda não havia tractores), que deixavam suas marcas, regos cheios de água e lama por todo o lado. Resumindo: chegamos com o fatinho preto todo castanho devido à lama que chegava aos joelhos.
Mas valeu a pena: finalmente chegamos!
1 comentário:
Ao ler esta tua interessante e "histórica" descrição,recordei
com alguma emoção,esse primeiro dia em que eu,bizonho rapazito do campo,troquei o Monte, onde dei os primeiros passos e conheci a Liberdade de viver, por uma vida de sacrifício,estudo e meditação.
Confesso que foi doloroso para mim deixar a Liberdade do Campo e os os meus amigos que me deram as primeiras lições da vida.
Senti uma enorme saudade do Monte,dos meus pais,dos meus irmãos e dos meus vizinhos..
Mas tinha que ser! Era a vida!
O meu irmão havia-me aconselhado e ajudado a tomar esta tão difícil decisão que era trocar a Liberdade do Campo,pela clausura e disciplina férrea de um Seminário,para que podesse,mais tarde,ter um futuro melhor.
Meu pai,que aceitara a minha decisão com alguma relutância,acompanhou-me e lá fomos os dois no combóio até Beja.
Dormimos numa pensão que fica na subida e que ainda hoje existe.
Na cama fomos assaltados por uma pulguinha que procurava saciar o seu devorador desejo de sangue.
Meu pai acendeu a luz e os dois,com extrema habilidade conseguimos matar o terrível inimigo que não dos deixava dormir.
No Seminário fomos recebidos, com a sua habitual simpatia, pelo Vice-Reitor,o sr. Padre Torrão,mais tarde cónego e bom latinista que, 4 anos depois, nos veria a deliciar com a tradução da Eneida.
E depois,depedi-me de meu pai,com enorme esforço para não chorar e fiquei entregue ao meu destino a partir desse inexquecível dia.
José Contreiras
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