A EXPULSÃO DOS EXPLORADORES
O IV Evangelho é singular.
Primeiro, porque a sua autoria é muito discutida.
Hoje, ninguém minimamente estudioso destas matérias e de espírito aberto ao progressivo desenvolvimento das disciplinas parceiras da Sagrada Escritura atribui ao apóstolo João, irmão de Tiago e filho de Zebedeu a autoria do IV Evangelho. A sua redacção foi demasiado tardia para ser atribuída ao tradicional evangelista. Talvez um outro João, o Presbítero, talvez até um herege chamado Cerinto, talvez algum ou vários cristãos judeus vinculados ou não à catequese de João, talvez... Certo é que, se a autoria se perdeu na escuridão do tempo, o nome de João deu força e legitimidade à sua aceitação por parte das comunidades do século II.
Também, o que durante muito tempo se teve como doutrina indiscutível, que o objectivo deste Evangelho era completar o que faltava nos outros, parece não colher o parecer favorável da maioria dos estudiosos modernos. Se realmente o(s) autor(es) do IV Evangelho conheceu os sinópticos (Marcos, Lucas e Mateus), fez deles uma reinterpretação, uma releitura, um aprofundamento da mensagem cristã, mais de 50 anos depois dos acontecimentos.Vem isto a propósito do Evangelho do domingo passado escolhido para festejar a Igreja de S. João de Latrão, igreja do bispo de Roma – Igreja Mãe de Todas as Igrejas -mandada construir pelo imperador Constantino, o tal que deu a “liberdade” à Igreja.
Narra-se nesta passagem do IV Evangelho (João, 2, 13-22) o episódio da expulsão dos exploradores do Templo, que conclui assim: “- Tirai tudo isto daqui: não façais da casa de meu Pai casa de comércio”. Porém, o Evangelho de Marcos, o mais antigo de todos, conclui de outro modo: “- Não está escrito que a minha casa será chamada casa de oração para todas as nações? Mas vós fizestes dela covil de ladrões.” (Marcos, 11, 17).
“Casa de comércio” é uma expressão suave; “covil de ladrões” é uma expressão dura. Qual destas gozará de maior autenticidade e proximidade às “verdadeiras palavras” do Mestre. Por mim, creio que é a segunda. É de um profeta que sofre a miséria do povo…
Toda esta reflexão levou-me ao Diário do tal meu amigo que, sobre este mesmo tema, escreveu assim:
“Porque estava próxima a festa da Páscoa,
subiu com os discípulos à cidade de Jerusalém.
Fervilhava de movimento a cidade
e, lá no alto, o Templo,
e dentro do Templo, a Arca da Aliança.
A antiga arca do Povo,
que atravessara desertos e rios,
sempre puxada por alimárias possantes,
ali estava aprisionada dentro de altos muros
e grossas e douradas portas.
Ali estava, guardada noite e dia,
por zelosos sacerdotes e estudiosos levitas.
Ali estava, afastada, escondida e longe do povo sofredor.
O povo que vinha sempre,
apesar das fomes,
apesar da escravidão,
apesar dos impostos,
apesar do jugo que sobre ele pesava como montanhas,
apesar de tudo,
o povo voltava sempre
e passava por entre os animais prontos para o sacrifício,
e pagava,
e passava por entre as bancas dos cambistas e dos agiotas,
e pagava,
e passava por entre o estrume espalhado pelas praças,
e pagava.
e passava por entre os sagrados intelectuais do templo,
e pagava.
Se uma mãe recente agradecia o seu filho, pagava;
se o leproso suplicava ou agradecia a cura, pagava.
O povo pagava o luxo dos profissionais de Deus;
o povo pagava a exploração à custa de Deus.
O Mestre chega e revolta-se.
Sente a exploração do seu povo.
Sabe que à sombra da religião se faz negócio…
(Onde é que eu já vi isto?)
E parte tudo: as mesas, os bancos e as cadeiras.
E fustiga com açoites de ira os exploradores do povo.
Fogem negociantes, fogem bois, fogem carneiros,
fogem as aves das gaiolas.
Tudo foge.
“A casa de meu Pai é casa de oração.
Fizestes dela casa de negócio.”
E a exploração dos mais fracos continua, continua...
1 comentário:
É muito interessante a abordagem do tema, sobretudo pela comparação que estabelece entre a expressão do IV evangelho, "...casa de comércio", e a de Marcos, "...covil de ladrões".
Passados 50 anos, já se revelava a tendência para a adaptação da Nova Instituição à realidade social, "branqueando" ou atenuando asperezas que não poderiam ser toleradas, se vistas à luz da expressão de Marcos.
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