Tenho-me deliciado a ler e reler a bela obra do Antonino. Quanto mais releio, mais referências interessantes encontro. Aquilo não é uma auto-biografia, mas antes uma multi-biografia.
Quantos não se revêem naquelas referências oportuníssimas às praias da Costa Alentejana, às planícies floridas na Primavera e agrestes na invernia, aos vinhedos serranos e suas quintas, etc, etc, etc...? Não refiro já o encadeamento da estória e as belíssimas composições literárias que o autor coloca na boca dos personagens, com a maior oportunidade.
Quero apenas relembrar, por analogia vivida, um episódio ou dois, dos tempos das Praias Alentejanas.
Penso que foi no primeiro ou segundo ano que ali passámos um período de férias: ainda vivia o célebre ex-combatente da G.G., poeta popular em Vila Nova de Milfontes, o saudoso Almada, e nós ficávamos alojados numa casa da rua principal da vila, mais ou menos a meio, do lado direito e que tinha umas janelas ovais no piso superior.
Ainda não havia o Colégio de N.S. da Graça, onde mais tarde nos recolheríamos com o conforto possível e higiene adequada.
Mas vamos às estórias: depois do almoço e da sexta tradicional e obrigatória, como bons alentejanos, seguia-se uma ida à praia. Ali pelas dezassete e tal, um de nós era destacado para deixar a praia e ir tocar o sino da igreja matriz, chamando os fiéis para o terço das dezoito horas.
Não havia voluntários, (todos preferiam continuar mais um pouco na praia).
Um dia calhou-me em sorte ou por nomeação desempenhar a tarefa, no caso pouco simpática, e lá fui. Teria então os meus 15 ou 16 anos.
Na igreja, decorria uma sessão de catequese, ministrada por uma adolescente, de seu nome Maria da Graça, que eu conhecera dois ou três dias antes por ocasional encontro em sua casa, onde fora entregar uma lembrança de que fora portador, dirigida a sua mãe, D. Mariana Neves Dimas, por uma senhora daquelas que substituíam o padre na igreja e ensinavam catequese na minha aldeia, uma tal D. Maria Joaquina, verdadeira causa da minha ida para o seminário.
Ao entrar na igreja, deparei com a Maria da Graça, (Gracinha), e os nossos olhares cruzaram-se fugidíos, mas ao subir as escadas de acesso à torre sineira havia uma abertura a meio que permitia ver para o interior da igreja e aí novos olhares se trocaram, agora acompanhados de um sorriso cúmplice. Que lindos olhos quase tímidos se escondiam por detrás de uns cabelos fartos, cor de mel, caindo em caracóis e cobertos por um véu alvinitente!
Era o diabo que se mostrava naquela figura frágil, mas infinitamente bela!
Também já terão percebido que começou a haver um voluntário para ir todos as tardes tocar o sino, deixando de gozar as delícias da praia.
Mais tarde, ou seja, uns dias depois, penso que um domingo, ocorreu um passeio de barco a remos, até ao Moinho da Asneira e volta, aproveitando as marés, para facilitar o esforço dos remadores.
A dada altura do passeio cruzámo-nos, ou melhor, passou por nós um barco a motor, barco de recreio, que, na altura, ainda era coisa rara no rio Mira. Era o filho do Dr Águas, personalidade importante da vila, que levava a passear um grupo de jovens, entre os quais a Maria da Graça, cuja presença me despertou imediatamente a atenção: -será que namora com o filho do Doutor? Certamente que sim! - pensei.
Ao cruzarem-se as embarcações e quando iam mais próximas, a Maria da Graça atirou uma maçã, (ou pêro), para o nosso barco, que eu tive a destreza e a felicidade de apanhar.
Imaginem-se nesta situação, na época e ambiente em que vivíamos e analisem bem: aquilo não era mesmo o diabo a tentar? Agora era uma autêntica Eva a dar a maçã ao Adão!
Resumindo e concluindo: "NUNCA CHEGUEI A FALAR COM A MARIA DA GRAÇA!"
PS. Nem a D. Maria Joaquina, especial protectora da minha "vocação sacerdotal", sonhava que em vez de me proteger através da sua amiga, a quem por mim enviara uma lembrança e certamente recomendação de vigilância discreta sobre o meu comportamento, nem ela sonhava dizia, que me estava precisamente a apresentar ao Inimigo, ao perigosíssimo demónio tentador pela "carne". Ela, D. Joaquina, que era uma celibatária ou "corina", como diria um amigo meu, já se antevia na posse de um sacerdote seu protegido, que lhe havia de salvar a alma.
Esta senhora e mais duas irmãs, igualmente corinas, vituperaram a minha pobre e desprotegida Mãe, quando da minha saída do seminário, acusando-a de não me ter defendido suficientemente dos perigos e tentações que me levaram à desistência.