RECORDAR
(Diário de um amigo)
Vila Velha, 13 de Abril de 2010
Creio que hoje, se ainda estivesse connosco, completaria sessenta e nove anos de idade o nosso companheiro Manuel dos Santos Catarino.
Recordo-o bem. Andava ele já no terceiro ano, quando entrei para o seminário. Era alto e forte. Impunha-se pelo seu comportamento e pelo seu trabalho. Era respeitado por todos. Juntos, passávamos muitos dias das férias do verão em Almodôvar colaborando com o Cónego Nazário, padrinho de crisma de ambos. Ajudávamos nas festas das aldeias, colaborávamos no cartório (a ordem alfabética dos livros de baptizados e casamentos ainda devem ter a nossa letra), fazíamos os registos de baptizados e casamentos, viajámos por aqueles montes e vales até S. Barnabé onde o cheiro do medronho nos aformoseava a caminhada. Dias bons aqueles…
Recordo-o depois nos caminhos de Espanha. Lá partia ele para Vitória e eu para Comillas. Tantas viagens fizemos juntos. Conversando, discutindo, amigos. E, na noite, o comboio atravessava a braveza de Castela, soprando, arrastando-se numa infinidade de contratempos e de esperas. Os frios da viagem pelo Natal…
Recordo umas férias missionárias em Ermidas-Sado. O entusiasmo e a alegria da experiência concreta no mundo das pessoas. A verdade com que seminaristas e não seminaristas, rapazes e raparigas, unidos num mesmo ideal, eram capazes de viver e conviver saudavelmente, apesar do calor sufocante do verão alentejano. Amizades que se consolidavam. Fraternidades que se repartiam. E a saudade experimentada quando os primeiros partiram no comboio da tarde…
Recordo o Sobral da Adiça. Tantas histórias por contar. Tanta catequese por fazer. Tanto entusiasmo. E… tanta solidão! Contigo, Manel, passei os meus primeiros tempos de presbítero, ajudei-te nas festas de verão, acho que fiz o sermão e aprendi contigo a alegria de ser cristão.
Recordo os “Cursillos de Cristiandade”. A força, com que transmitias as tuas ideias e a tua fé, era contagiante. Eu acreditava, tu acreditavas, eles todos acreditavam.
Recordo a festa de Vidigueira. Quinta-feira d’Ascensão. O prior pediu-me para escolher um pregador para a festa. Não me lembrei de mais ninguém senão do Catarino. E ele veio. Fez-se entender. Proclamou a palavra com clareza e com ternura. Fez amigos.
(O Catarino na festa de Vidigueira com o velho prior e o coadjutor da paróquia - 1967.)
Recordo um outro dia. O Urbano, colega e amigo de ambos, diz-me com toda a crueza: “- O Catarino vai deixar. Vai-se casar.” Fiquei estupidamente atordoado e não tive outra maneira de exprimir o que sentia senão desabafar: “- Porra! Quando acabará esta maldita lei que nos faz infelizes e incompreendidos!” E, até hoje, estupidamente, por orgulho, tacanhez ou por outro motivo qualquer, mantém-se a irracionalidade e a hipocrisia de tal lei, com todos os dissabores, amargos de boca, crimes e mentiras espalhados na litosfera, blogsfera, atmosfera e por todas as outras esferas possíveis e imagináveis.
Finalmente recordo a noite. Era véspera do seu casamento. Estivemos juntos numa esplanada do Rossio. Creio que bebemos um café ou um sumo. Não sei. Só sei que foi a última vez que vi o Manuel dos Santos Catarino.