Com a devida vénia, fui repescar ao "Palheiro do JUMENTO" esta transcrição que me parece muito clara e lúcida e com a qual estou totalmente de acordo:
«Passam hoje 35 anos sobre a tal inesquecível madrugada libertadora. Como de costume, o regime vai assinalar a data com umas quantas cerimónias, públicas e particulares, sempre previsíveis, sempre obrigatórias e sempre destituídas de sentido. O Presidente da República vai fazer o habitual discurso na Assembleia, em que tudo o que interessa é ler nas entrelinhas se ele ataca ou não ataca o Governo em funções — conforme é tradição da data; o PCP e a extrema-esquerda vão desfilar por aí, jurando que “Abril está por cumprir”; e o coronel Vasco Lourenço, em representação dos militares do 25 de Abril, vai destilar o seu habitual azedume contra os ‘políticos’ e insinuar que, se for preciso, eles são capazes de voltar a pegar em armas e acabar “o que ficou inacabado”. Há muito que defendo que a memória dessa luminosa manhã de liberdade deveria deixar de ser comemorada — pelo menos, assim —, como forma de preservar a sua dignidade. O passado é um país distante e a sua revisitação, a tentativa de reinventar um dia feliz vivido lá atrás, acaba sempre por ter um sabor amargo, a mofo.
Além de que esta sessão anual de lamúrias públicas não tem razão de ser: o 25 de Abril foi cumprido, tanto quanto o podia ser. Os três D foram cumpridos. Democratizámos, mas a democracia — numa nação que nunca teve a liberdade como o primeiro e absoluto dos valores — não é muito mais do que isto. Descolonizámos — tarde e mal, e mal porque tarde —, mas cumprimos o princípio essencial de devolver o que não era nosso e que só as circunstâncias históricas (sem dúvida motivo de orgulho) nos tinham provisoriamente confiado. E desenvolvemo-nos: sim, desenvolvemo-nos. Só quem não viveu ou não se lembra do que era o Portugal de 1974, só quem não viu, por exemplo, a série de programas de António Barreto na RTP, é que pode ainda ter dúvidas sobre isso. O Portugal de hoje não tem nada, rigorosamente nada, a ver com o Portugal do Estado Novo — miserável, ignorante, de mão estendida e espinha curvada. Acontece é que nunca estamos satisfeitos, achámos que a liberdade era o direito de tudo reclamar, todos os direitos sem nenhuns deveres, a Europa e o mundo fascinados a nossos pés, pagando eternamente pelo espectáculo da nossa liberdade e do cravo na lapela, e nós encostados aos subsídios e às facilidades sem termos de nos cansar. Hélas!, não é assim que se constroem as nações que vão à frente!
Podíamos, ao menos, ter-nos entendido, de uma vez por todas, sobre o essencial desse dia distante: a liberdade. Mas nem isso. Basta ver como, hoje ainda, os próprios militares de Abril estão divididos, para perceber como essa coisa aparentemente tão simples que é a ideia de liberdade continua a dividir uma nação que nunca, verdadeiramente, a amou, respeitou ou se bateu por ela. Na semana em que Otelo foi promovido a coronel, com efeitos retroactivos, Jaime Neves foi promovido a general, e a Associação dos Militares de Abril amuou por causa desta última. Não perceberam que o que aconteceu em determinado momento não pode ser apagado da história pelos momentos supervenientes, seja de que lado for: que a liberdade se ficou a dever, primeiro, a Salgueiro Maia e Otelo, e, depois, a Eanes e Jaime Neves.
O “bota-abaixo”, como diz José Sócrates, é o que nós achamos de mais próximo à liberdade: poder dizer livremente mal de todos os ‘políticos’, depois de cinquenta anos em que ninguém se atrevia sequer a dizê-lo à própria sombra. Tornar o simples exercício do poder e a correspondente exposição pública uma oportunidade para o fartar vilanagem, que confundimos com coragem. Não digo, antes pelo contrário, que os políticos sejam melhores hoje do que eram há dez, vinte ou trinta anos: aqui, na Europa, no resto do planeta. Digo é que, quando acontece alguém chegar à política movido pelo sentido de serviço público e pela vontade de transformar as coisas, ele é tranquilamente cilindrado como os outros, com a leveza de um Vasco Lourenço discorrendo sobre o país ou de um qualquer ‘corajoso’, insultando, anónima e impunemente, nos blogues do mundo fácil de governar da net.
Não devíamos, assim, queixar-nos ou admirar-nos se os melhores desistem e se os piores regressam, no vazio criado. Para desgraça nossa — e com o nosso voto! —, Santana Lopes vai, muito provavelmente, regressar ao governo de Lisboa, depois de ter deixado a cidade e o país de pantanas. Mas quem quer verdadeiramente preocupar-se em escrutinar o que foi o seu desgoverno passado? As pessoas ficam-se pela espuma das coisas — o túnel do Marquês — e nem querem saber do resto, se o homem é apenas um genial mestre da sedução sem causa nobre. E a senhora que o escolheu — Manuela Ferreira Leite — desdenhou, para encabeçar a lista do PSD às europeias, alguém como Marques Mendes, dos raros que quiseram moralizar as coisas, pagou por isso e se afastou tranquilamente. Devíamos, sim, pensar que Paulo Rangel, o cabeça-de-lista do PSD às europeias, e Nuno Melo, o do PP, são dois excelentes deputados, dos poucos que fazem a diferença, e que os respectivos partidos afastam do Parlamento para esse doirado exílio europeu, onde habitam sumidades políticas como Edite Estrela ou Deus Pinheiro. Devíamos pensar, pior ainda, por que razão desistem eles próprios e tão rapidamente de uma batalha onde farão falta.
Já aqui escrevi, há quinze dias, sobre o que penso do caso Freeport e da posição em que ele coloca José Sócrates. Escrevi que, pessoalmente, acredito na sua inocência, mas não abdico de ver tudo esclarecido, sem margem para qualquer dúvida. O que eu não entendo é a leviandade de tudo isto: um homem é publicamente suspeito do pior dos crimes políticos e a coisa arrasta-se, meses, anos, em fogo lento, sem que ele seja ilibado ou acusado e tendo ainda de governar o país e enfrentar eleições sob esse peso. Não pode desistir, porque seria como que uma confissão de culpa; não pode continuar em igualdade de circunstâncias com os seus adversários políticos, porque há sempre essa terrível suspeita pendente sobre ele. Não pode ficar quieto e calado, porque alimenta as suspeitas; não se pode defender, porque é uma ‘ameaça’ e uma ‘pressão’. O que pode um cidadão, que tem o azar de ser primeiro-ministro de Portugal, fazer num caso destes e enquanto espera que a Justiça cumpra o seu papel?
Há um tipo — que tem o mesmo apelido que eu e que escreve semanalmente no “DN”, onde se especializou na ofensa fácil — que escreveu que Sócrates falar de moral é o mesmo que Cicciolina falar de virtude, ou coisa que o valha. O cidadão José Sócrates, sentindo-se ofendido (como qualquer um de nós se sentiria), põe um processo ao ofensor. Tem esse direito? Não: é o primeiro-ministro a intimidar um ‘jornalista’. E o ‘jornalista’ vira mártir da liberdade de imprensa na praça pública. Fala-se em “ameaças intoleráveis”, da liberdade em risco, da heróica e antiquíssima luta da imprensa contra o poder, do “jornalismo de investigação” contra as pressões políticas.
Liberdade? De imprensa? Ora, vão pastar caracóis para o Sara! Eles sabem lá o que é a liberdade! Sabem lá o que isso custa a ganhar! » [Expresso assinantes]
Parecer:
Por Miguel Sousa Tavares.
«Passam hoje 35 anos sobre a tal inesquecível madrugada libertadora. Como de costume, o regime vai assinalar a data com umas quantas cerimónias, públicas e particulares, sempre previsíveis, sempre obrigatórias e sempre destituídas de sentido. O Presidente da República vai fazer o habitual discurso na Assembleia, em que tudo o que interessa é ler nas entrelinhas se ele ataca ou não ataca o Governo em funções — conforme é tradição da data; o PCP e a extrema-esquerda vão desfilar por aí, jurando que “Abril está por cumprir”; e o coronel Vasco Lourenço, em representação dos militares do 25 de Abril, vai destilar o seu habitual azedume contra os ‘políticos’ e insinuar que, se for preciso, eles são capazes de voltar a pegar em armas e acabar “o que ficou inacabado”. Há muito que defendo que a memória dessa luminosa manhã de liberdade deveria deixar de ser comemorada — pelo menos, assim —, como forma de preservar a sua dignidade. O passado é um país distante e a sua revisitação, a tentativa de reinventar um dia feliz vivido lá atrás, acaba sempre por ter um sabor amargo, a mofo.
Além de que esta sessão anual de lamúrias públicas não tem razão de ser: o 25 de Abril foi cumprido, tanto quanto o podia ser. Os três D foram cumpridos. Democratizámos, mas a democracia — numa nação que nunca teve a liberdade como o primeiro e absoluto dos valores — não é muito mais do que isto. Descolonizámos — tarde e mal, e mal porque tarde —, mas cumprimos o princípio essencial de devolver o que não era nosso e que só as circunstâncias históricas (sem dúvida motivo de orgulho) nos tinham provisoriamente confiado. E desenvolvemo-nos: sim, desenvolvemo-nos. Só quem não viveu ou não se lembra do que era o Portugal de 1974, só quem não viu, por exemplo, a série de programas de António Barreto na RTP, é que pode ainda ter dúvidas sobre isso. O Portugal de hoje não tem nada, rigorosamente nada, a ver com o Portugal do Estado Novo — miserável, ignorante, de mão estendida e espinha curvada. Acontece é que nunca estamos satisfeitos, achámos que a liberdade era o direito de tudo reclamar, todos os direitos sem nenhuns deveres, a Europa e o mundo fascinados a nossos pés, pagando eternamente pelo espectáculo da nossa liberdade e do cravo na lapela, e nós encostados aos subsídios e às facilidades sem termos de nos cansar. Hélas!, não é assim que se constroem as nações que vão à frente!
Podíamos, ao menos, ter-nos entendido, de uma vez por todas, sobre o essencial desse dia distante: a liberdade. Mas nem isso. Basta ver como, hoje ainda, os próprios militares de Abril estão divididos, para perceber como essa coisa aparentemente tão simples que é a ideia de liberdade continua a dividir uma nação que nunca, verdadeiramente, a amou, respeitou ou se bateu por ela. Na semana em que Otelo foi promovido a coronel, com efeitos retroactivos, Jaime Neves foi promovido a general, e a Associação dos Militares de Abril amuou por causa desta última. Não perceberam que o que aconteceu em determinado momento não pode ser apagado da história pelos momentos supervenientes, seja de que lado for: que a liberdade se ficou a dever, primeiro, a Salgueiro Maia e Otelo, e, depois, a Eanes e Jaime Neves.
O “bota-abaixo”, como diz José Sócrates, é o que nós achamos de mais próximo à liberdade: poder dizer livremente mal de todos os ‘políticos’, depois de cinquenta anos em que ninguém se atrevia sequer a dizê-lo à própria sombra. Tornar o simples exercício do poder e a correspondente exposição pública uma oportunidade para o fartar vilanagem, que confundimos com coragem. Não digo, antes pelo contrário, que os políticos sejam melhores hoje do que eram há dez, vinte ou trinta anos: aqui, na Europa, no resto do planeta. Digo é que, quando acontece alguém chegar à política movido pelo sentido de serviço público e pela vontade de transformar as coisas, ele é tranquilamente cilindrado como os outros, com a leveza de um Vasco Lourenço discorrendo sobre o país ou de um qualquer ‘corajoso’, insultando, anónima e impunemente, nos blogues do mundo fácil de governar da net.
Não devíamos, assim, queixar-nos ou admirar-nos se os melhores desistem e se os piores regressam, no vazio criado. Para desgraça nossa — e com o nosso voto! —, Santana Lopes vai, muito provavelmente, regressar ao governo de Lisboa, depois de ter deixado a cidade e o país de pantanas. Mas quem quer verdadeiramente preocupar-se em escrutinar o que foi o seu desgoverno passado? As pessoas ficam-se pela espuma das coisas — o túnel do Marquês — e nem querem saber do resto, se o homem é apenas um genial mestre da sedução sem causa nobre. E a senhora que o escolheu — Manuela Ferreira Leite — desdenhou, para encabeçar a lista do PSD às europeias, alguém como Marques Mendes, dos raros que quiseram moralizar as coisas, pagou por isso e se afastou tranquilamente. Devíamos, sim, pensar que Paulo Rangel, o cabeça-de-lista do PSD às europeias, e Nuno Melo, o do PP, são dois excelentes deputados, dos poucos que fazem a diferença, e que os respectivos partidos afastam do Parlamento para esse doirado exílio europeu, onde habitam sumidades políticas como Edite Estrela ou Deus Pinheiro. Devíamos pensar, pior ainda, por que razão desistem eles próprios e tão rapidamente de uma batalha onde farão falta.
Já aqui escrevi, há quinze dias, sobre o que penso do caso Freeport e da posição em que ele coloca José Sócrates. Escrevi que, pessoalmente, acredito na sua inocência, mas não abdico de ver tudo esclarecido, sem margem para qualquer dúvida. O que eu não entendo é a leviandade de tudo isto: um homem é publicamente suspeito do pior dos crimes políticos e a coisa arrasta-se, meses, anos, em fogo lento, sem que ele seja ilibado ou acusado e tendo ainda de governar o país e enfrentar eleições sob esse peso. Não pode desistir, porque seria como que uma confissão de culpa; não pode continuar em igualdade de circunstâncias com os seus adversários políticos, porque há sempre essa terrível suspeita pendente sobre ele. Não pode ficar quieto e calado, porque alimenta as suspeitas; não se pode defender, porque é uma ‘ameaça’ e uma ‘pressão’. O que pode um cidadão, que tem o azar de ser primeiro-ministro de Portugal, fazer num caso destes e enquanto espera que a Justiça cumpra o seu papel?
Há um tipo — que tem o mesmo apelido que eu e que escreve semanalmente no “DN”, onde se especializou na ofensa fácil — que escreveu que Sócrates falar de moral é o mesmo que Cicciolina falar de virtude, ou coisa que o valha. O cidadão José Sócrates, sentindo-se ofendido (como qualquer um de nós se sentiria), põe um processo ao ofensor. Tem esse direito? Não: é o primeiro-ministro a intimidar um ‘jornalista’. E o ‘jornalista’ vira mártir da liberdade de imprensa na praça pública. Fala-se em “ameaças intoleráveis”, da liberdade em risco, da heróica e antiquíssima luta da imprensa contra o poder, do “jornalismo de investigação” contra as pressões políticas.
Liberdade? De imprensa? Ora, vão pastar caracóis para o Sara! Eles sabem lá o que é a liberdade! Sabem lá o que isso custa a ganhar! » [Expresso assinantes]
Parecer:
Por Miguel Sousa Tavares.